Só nos contos que são de fadas, a história evolui de modo ordenado, fluido para um final feliz. Os contos que são dos homens, esses, constroem-se de forma arrítmica, sem aparente nexo, para uma moral quantas vezes amoral, que lá se vai endireitando a custo e sem grande certeza de bom resultado. Posto isto, alteremos a história do Rei Muralhas confiando, contudo, no mesmo mote:

Era uma vez um rei cheio de medo... 

Um medo delicadamente construído sobre palavras. 

Começaram cedo, entre soberanos, sem aparente maldade, a chamar Muralhas a este rei que construía com um gosto de menino, numa vontade entusiasmada, o muro que iria proteger a cidadela. Soava-lhes divertido esse prazer miudinho, acurado, de um homem dedicado à sua obra. Nunca acharam tratar-se de uma crítica. Diziam não fazer por mal, que acentuavam apenas uma característica e, assim, lá a acentuavam continuamente.

O soberano aprendeu a sorrir e acostumou-se ao nome ou à crítica, vá-se lá saber. Nessa atitude discreta, enquanto dirigia a construção, ia assentando pedra sobre pedra no coração que nem sabia magoado. Os súbditos, porque ouviram certa vez o trato e lhe reconheceram o trejeito, também eles exclamavam ‘VIVA, VIVA O REI MURALHAS’.

Os dias passaram e os muros acabaram por ser o seu forte. Sentia-se protegido das vozes, dos ditos, dos gritos, dos dias, da vida. Sorria inteiro consigo mesmo ao elevar os seus muros. Sorria muito. Facto, note-se, que valeu ao reino o estatuto de povo feliz. Os súbditos, todavia, apesar do título, viviam as suas vidas sem grande expressividade, a custo, numa sucessão apática de rotinas. Há que fazer a ressalva - não eram infelizes... Viviam e isso era-lhes suficiente.

Quem parecia genuinamente satisfeito, sabe-se lá porquê, era o bobo da corte. E esse, apesar de palavroso e exagerado nos modos, foi o único que nunca usou o termo Muralhas para se referir ao seu rei. Na verdade, em momentos muito especiais, ao ver o sorriso murado do soberano, chamava-lhe Amigo.

[2017] O Rei Muralhas, Antes da Queda dos Muros.