Escolhi a imagem de Cléo de 5 à 7, mas foi o belíssimo Os Respigadores e A Respigadora que há alguns anos abriu caminho até Agnès Varda. A realizadora morreu hoje e só me ocorre o poema de José Gomes Ferreira 'devia morrer-se de outra maneira, transformarmo-nos em fumo, por exemplo, ou em nuvens...'. A verdade é que é justamente assim que começo a sentir a morte. Morremos aos poucos, num grande desfazer. O nosso mundo, muito lentamente, vai transformando-se em fumo, ou talvez em nuvens, até que só resta um pedaço de matéria que se enterra. Os meus heróis continuam a desaparecer. Boa parte de mim é já essa grande nuvem.


Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: «Fulano de tal
comunica a V. Ex.ª que vai transformar-se em nuvem
hoje às 9 horas. Traje de passeio».
E então, solenemente, com passos de reter tempo,
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos
todos assistir à despedida.
Apertos de mão quentes. Ternura de calafrio.
«Adeus! Adeus!»
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos...
em seguida, os lábios... depois, os cabelos...) a carne,
em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) - nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira










 


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