A semântica irá conviver sempre com as circunstâncias. Posso ler mil vezes um texto e nessas mil vezes retirar significados diferentes.

Regressei ao La Dolce Vita.
Sempre foram as mulheres que Fellini tão bem soube categorizar que me fascinaram - os seus universos, as suas fragilidades, as suas forças, os seus desejos livres, os seus desejos reprimidos, as suas vidas, o resultado das suas vidas, as suas verdades, os seus desencantos, a sua aparente leveza... A segunda vez que vi o La Dolce Vita, sofri uma semana inteira com a alma aflita de um homem que cobiça a vida de outro homem cuja aparente perfeição traduz-se afinal na frustração mais dorida do filme, capaz da maior violência. 
Desta vez, foi o fim que me incomodou muito. Muito mesmo. O momento em que Marcello chega à praia, depois de dias violentos, e vê ao longe - com um curso de água a separá-los - a rapariguinha que conheceu na esplanada junto ao mar. Já não vi nela uma mulher entre as mulheres, a mais leve e inocente, mas o anjo forte e livre que surge no climax da 'la dolce vita' daquele homem. Fiquei tão zangada com Fellini. Abandona-nos assim, num desfecho estranhamente óbvio, incomodando-nos com a impossibilidade de comunicação, temática transversal a todo o filme, entre Marcello e o doce anjo de Úmbria. Nunca saberei o que aquele sorriso simples, livre, o convidava a fazer. A imagem do que parece ser uma cruz num fundo limpo, sem qualquer ruído, deixa-me a suspeita que se trataria da sua própria redenção.


* imagem: La Dolce Vita (cena final)







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